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Figurinos de época – historicidade, recursos e interpretações

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Quase sempre, quando alguém tenta relatar um acontecimento vivido em outro contexto, acontecido em outra parte da sua vida – esse alguém tende a recontá-lo, não como ele realmente aconteceu (com fidelidade cirúrgica), mas sim como ele enxerga esse fato dentro do contexto atual da sua vida; Cientistas dizem que com o passar da idade, a nossa memória redesenha acontecimentos na nossa memória, e não lembramos de certas coisas como elas realmente aconteceram, mas como nosso cérebro desejaria que tivessem acontecido.

A memória coletiva é ainda mais traiçoeira, pois lembramos do que não vivemos e nem poderíamos lembrar, mas conhecemos: dos filmes, novelas, séries de televisão – e das aulas de história.  É um fato, a memória coletiva é construída a partir de representações, quem não se lembra quando algum professor contou sobre as pinturas e gravuras de Tiradentes pintadas atrelando à imagética do Jesus Cristo Ocidental (que já era por si só uma representação, e não exatamente como o filho de Maria andava por ai...). Mas a partir do século XX, as pinturas tornaram-se obsoletas, e a memória visual do coletivo passou a ser moldada pelo audiovisual (cores, movimentos, sons, muito mais interessante não?).

                Uma representação do passado fala mais do contexto em que foi produzida, do que tenta retratar é pura ideologia. Mas ideologia não é construída do nada e não existe nenhuma pura, depende diretamente do contexto em que nasceu, e de tudo o que veio antes dela. Por exemplo, os folhetos que foram espalhados durante a revolução francesa para difamar Maria Antonieta, satirizavam o comportamento sexual da rainha consorte de Luís XVI e insinuavam a prática de lesbianismo. Nenhuma relação lésbica foi comprovada, mas a imagem desenhada por esses folhetos, é praticamente a mesma que hoje pode ser vista em filmes e séries.



                É um processo inconsciente? Nem sempre, a direção e produção de um audiovisual é mais inteligente do que imaginamos, quase sempre cada ângulo da câmera de um cineasta não é escolhido por acaso. Um exemplo, a série britânica “Outlander” explora bastante cenas de violência com o protagonista (Sam Heughan), seria coincidência demais se toda a imagética do sofrimento do personagem em certas cenas, lembrasse a representações ocidentais de Cristo?  Assim como no caso do Tiradentes, é uma tentativa de gerar empatia no público; mesmo que você não seja cristão, foi bombardeado uma vida inteira por uma cultura cristã (tudo o que veio antes de você), inconscientemente um sentimento de piedade vai surgir no seu cérebro, mesmo que não saiba externar o porquê.

                Nesse sentido, podemos chegar ao assunto principal deste texto: se você é um leigo como eu (não entende nada sobre montagem, edição e etc) o que chama a sua atenção quando vai assistir um filme ou novela de época? O figurino, e ele cumpre um papel muito importante, junto com os cenários, ele é o combustível que alimenta a nossa memória do passado. É muito mais interessante ver atores vestindo deslumbrantes figurinos, numa tela grande e colorida, que estudar fotografia em preto e branco num livro de história.

                Mas como eu disse anteriormente, um filme não tem como e não precisa ser uma representação fiel de algum século passado, cada uma das quase dez adaptações de “Orgulho e Preconceito” são frutos de uma sociedade em processo de mudança, em movimento. O close na mão de Darcy ajudando Lizzie a subir na carruagem, o pedido de casamento acontecendo em plena tempestade e a reconciliação no amanhecer, eventos do filme de 2005 com Keira Knightley refletem o mundo nos anos 2000, seus sonhos, anseios e angustias.  Um mundo completamente diferente daquele do início do século XIX onde uma jovem da nobreza agrária escreveu umas das histórias de amor mais importantes e impactantes da história.




                Se o mundo muda, as noções do que é belo e do que não é, do que é desejável ou não, do que é decente ou não, também mudam. E são muito poucas as representações do passado que tentam se aproximar da coisa como era feita antigamente (como no caso da depilação). 

           Alterações precisam ser feitas para se adequar ao público que se quer atingir, como no caso da mais recente adaptação de Emma (sim, eu amo Jane Austen): eliminaram praticamente toda a diferença de idade entre a protagonista e Mr. Knightley, por que na atualidade um relacionamento entre um homem mais velho e uma jovem, é considerado problemático. Se tiver curiosidade em assistir, vai encontrar um Johnny Flynn sexy, ofegante em cena, quase um bon vivant (nada da austeridade própria do personagem). 


             A crítica social de Austen, escorreu pelo ralo, visto que resolveram representar os homens e as mulheres em pé de igualdade. Tal como no novo “Adoráveis Mulheres”, cria-se um mundo de fantasias, onde as diferenças de gênero são eliminadas, e todas as personagens masculinas estão na iminência de serem chamados de machistas. Mas isso é conversa para outro texto...

                Assim como a representação dos costumes muda, a das roupas também. E é aí que entra o figurino, que no limite do que historicamente correto e da criatividade, constrói um mundo novo inspirado no passado.  Aproveitando a deixa de “Emma” e das outras adaptações audiovisuais da escritora inglesa, vou dar um exemplo prático: Na sociedade Regenciana, era comum que os homens utilizassem meia calça e sapatilha (exatamente como o Colin Firth se veste em “Orgulho e Preconceito” de 1995), mas essa vestimenta foge completamente dos ideais de masculinidade atuais, ninguém hoje em dia acharia o Rei Sol lá muito atraente... As adaptações recentes, então trocaram a sapatilha e a meia, por uma bota de caça, algo mais viril por assim dizer.

As tais botas.

                Mas como eu disse, uma representação do passado não quer só atender as nossas “sensibilidades modernas”, ela é parte importante da criação de um mundo, e o figurino ajuda a traduzir ideias abstratas em imagética. Mais um exemplo se eu tenho uma personagem a frente do seu tempo, vou pôr ela de calças para mostrar como ela não liga para convenções sociais. Nesse sentido existem recursos que eu gosto mais, recursos mais sutis, e que muita gente não tem consciência. Um deles é o cabelo, no século XIX uma garota usava o cabelo solto apenas até a menarca – usar preso representava a passagem da infância à vida adulta, da menina que tornando-se mulher, e soltá-lo pode ser uma metáfora de libertação. 


Na versão de 1994 de “Adoráveis Mulheres” isso é muito bem marcado nos cabelos e figurinos, Jo (Winona Ryder) é a única das irmãs March que não se importa de andar com os cabelos desgrenhados e a roupa “inadequada”.  Grande parte do conflito entre Jo e Meg (Trini Alvarado), decorre disto, a irmã mais velha (que se adequa as expectativas de gênero da época) proíbe a mais nova de dançar para não revelar o estado do vestido decorrente do comportamento “avançado” da menina. Mas na versão de 2019 esse recurso não funciona, todos os cabelos estão desgrenhados (inclusive da Marmee de Laura Dern e da Meg de Emma Watson, o estoque de grampos de Greta Gerwig era limitado).

Expectativa.
Realidade: desgrenhadas.

Essa franjinha,,,


Essa da Florence Pugh eu até entendo o propósito, mas nem é historicamente correta e nem bonita - pelo contrário acho medonha.

Outro exemplo desse recurso é o artificio de mostrar lindos bustos e braços de beldades na telinha ou na telona: no século XIX quase nenhuma saia com os braços a mostra, os vestidos diurnos eram fechados para proteger a pelo do sol (não existia filtro solar, afinal). Mas à noite, com as lareiras acesas, as moças usavam os seus vestidos com mangas curtas e bailavam nos salões. 

Bracinhos a mostra.

        Em “...E o Vento Levou” (1939) Scarlett (Vivian Leigh) decide usar um vestido desses de noite para ir num evento social, com os braços a mostra e é até advertida pela escrava que a ajuda se vestir. Chegando no local da festa, ela causa, só ela está usando o seu vestido todo aberto. Ela não liga para convenções sociais, ela inventa moda, mas está lá a sua prima Melanie (Olivia de Havilland) e as outras mulheres todas vestidas como era a moda (e fechadas até o pescoço).


Fechada até o pescoço.
O mesmo recurso é usado no figurino de “Força de Um desejo” (1999), inclusive com forte inspiração no clássico do cinema inspirado no romance de Margaret Mitchell: Ester (Malu Mader) é uma cortesã, uma mulher libertária que não teme parecer “indecente”, sai com os braços e o colo abertos em plena luz do dia.


Talvez o melhor figurino seja aquele que atenda melhor a proposta do filme/novela, que saiba falar com o público atual, ao mesmo tempo que dialoga com o passado pretensiosamente retratado. Eu pessoalmente acho que exageraram na lama no vestido da Lizzie de Joe Wright, mas aí acho que é mais rabugice da minha parte que outra coisa. Eu gosto muito da criatividade misturando texturas no novo Emma, mas me encanta também a fidelidade das roupas de “A jovem Rainha Victoria” (2009) e Emily Blunt nunca esteve tão linda quanto nesse filme....



BABEM!



Texto escrito por: Sandy.