Nos Trilhos: Capítulo 1





Novela de

Sandy

 

Escrita por

Sandy

 Classificação: 


Personagens deste capítulo:

ANA (Carolina Kasting)

CARLO (Danton Mello)

GISELE (Christine Fernandes)

LÍVIA (Lucy Ramos)

BEATRIZ (Nívea Maria)

CARLA (Débora Falabella)

PAULO (Murilo Benício)

PEDRO (Dan Stulbach)

LEILA (Giovanna Rispoli)

HELOISA (Ângela Vieira)

LOLA (Maria Clara Gueiros)

HEITOR (Marcelo Médici)

 

Título do capítulo de hoje: “UMA LUZ NO FINAL DO TÚNEL”


CENA 01 SALA DE AULA UNIVERSIDADE FEDERAL INT/DIA


 
Ana ministra uma de suas aulas diárias sobre arte e literatura para uma parca turma de jovens sonolentos e impacientes.
 
ANA:  [...] Dédalo construiu o imenso labirinto de Creta ao redor de si mesmo, sua grande e suntuosa obra de arte, tornou-se também sua prisão...
 
Ana fecha os olhos, se vê com uma tocha flamejante nas mãos, observando as paredes milenares no escuro, as tocando delicadamente com as pontas dos dedos.
 
ANA:  O Minotauro, fruto do amor proibido da Rainha Parsífae com um touro, foi aprisionado ali dentro... A cada ano sete jovens eram dados em sacrifício ao filho-monstro, até que no terceiro ano, um príncipe semi-deus chamado Teseu se voluntariou para entrar no labirinto e mata-lo...
 
Ela dá um giro, se assusta com a própria sombra espectral. Abre os olhos e encontra vários alunos entediados.
 
ANA: Segundo um oráculo, ele apenas sairia vitorioso com ajuda do amor! A filha do rei Minos, Aridne se apaixonou perdidamente pelo forasteiro e ofereceu sua astúcia como arma para vencer o seu-irmão!
 
Ana dirige o olhar para turma, e desta vez eles demonstram algum interesse nos olhos.
 
ANA: O fio de Ariadne permitiu que Teseu encontrasse o caminho de volta... Ela pediu para ser levada embora, mas durante o trajeto foi abandonada pelo herói na ilha Naxos... Os homens fugiram enquanto ela adormeceu... Na certa perdida, se sentindo desamparada pelo o homem que amou com fervor e fidelidade, encontrou amparo nos braços de Dionísio, numa amarga perdição...
 
Ana dirige seu olhar para os alunos, que começam a se levantar e sair: o tempo da aula está findo. Ela põe uma das mãos nas têmporas, a sente molhada de suor, levanta a cabeça e se encandeia com a luz forte que invade a sala pelas vidraças. Meio tonta, pega seus pertences e sai, CORTA PARA:
 
CENA 02 TRÂNSITO CAÓTICO DO RIO/DIA


 
O sinal fecha, Ana para o carro a contragosto, sente que vai demorar para o trânsito voltar a se mover e um sentimento de agonia toma conta de sua garganta. Olha para os lados, procurando algo que para olhar e fazer o tempo passar mais rápido: de longe consegue ver um senhor e uma senhora tomam sorvete numa pracinha, de braços dados sentados num banco de madeira verde. Ela percebe algo de semelhante nesse quadro de fim de semana fora de fim de semana, coloca os olhos, mas mesmo assim a vista continua embaçada... Força a vista e nada. O sinal abre, ela tira os óculos bruscamente e mete o pé no acelerador, CORTA PARA:
 
CENA 03 APARTAMENTO DE ANA INT/DIA
 
Ana entra, cansada e com dor-de-cabeça, se joga no sofá, fecha os olhos e espera que a cabeça pare de latejar. Gisele entra sem cerimônia, com uma delicada xicara de porcelana chinesa com arabescos orientais na mão.
 
GISELE: Espero não estar incomodando...
 
Ana abre os olhos e tenta esboçar um sorriso.
 
ANA: Estou tão mal hoje, que você jamais iria me incomodar, minhas dores e meus fantasmas fazem esse trabalho sozinhos!
 
GISELE: Lhe deixarei sozinho com eles, só preciso de uma xícara de açúcar! Estou tentando arriscar um bolo, se o resultado for apresentável te trago um pedaço!
 
ANA: Leva um pacote inteiro, não existe clichê que faça a outra parte parecer mais mesquinha que esse da xícara, não serve nem pra puxar conversa! O que se faz hoje em dia com uma xícara de açúcar? Essa desculpa só deve servir pra puxar assunto!
 
GISELE: Se eu quisesse transar com um vizinho iria pedir vinho ou whisky emprestado, e não açúcar!
 
Gisele mexe no armário da cozinha.
 
GISELE: Só tem um pacote fechado! Você pode ficar sem?
 
ANA: Não tenho dotes culinários, só uso pra adoçar café ultimamente, mas como pretendo cortar essa bebida maligna da minha rotina, aumenta minha enxaqueca... Pode levar!
 
GISELE: O telefone tocou bastante hoje de manhã...
 
Com sofreguidão pega o aparelho e olha as últimas chamadas.
 
ANA: (Decepcionada) Era a minha mãe... Estranho... Ela sabe que eu trabalho de manhã.
 
Gisele senta-se ao lado da amiga.
 
GISELE: Se ela estiver preocupada, já já aparece. Deve ter sentido algum pressentimento...
 
ANA: Coração de mãe nunca presente nada de bom...
 
GISELE: Que pessimismo! Até o final de semana ele te liga, basta ter paciência...
 
ANA: Eu vi na praça... Jurava que era ela...
 
GISELE: Quem? Perdi o fio da meada...
 
ANA: Minha mãe! De quem estamos falando?
 
GISELE: Dele! Não é por causa dele que você está desse jeito? E o que tem a dona Beatriz?
 
ANA: Eu jurava que era ela naquela pracinha, de braços dados com um senhor, muito distinto de terno azul lápis-lazúli... Parecia com ela, o cabelinho bem arrumado, ajeitadinho, num vestido verde... Eles estavam tomando sorvete... Mas eu vi de longe, do carro enquanto voltava pra casa...
 
GISELE: Quem iria tomar sorvete em pleno sol a pino... Horário de almoço, calor matando!  Muito menos a sua mãe! Amiga, ele te deixou pior do que eu imaginava!
 
ANA: (Sorrindo tristemente) Do jeito que fala parece que estou ficando louca! Só estou contanto uma coisa que me chamou atenção... e eu me confundi! Para de insinuações!
 
GISELE: Não estou insinuando nada, estou afirmando! Parece que ele deixou alguma fora do lugar ai dentro!
 
Gisele aponta para a cabeça de Ana fazendo uma careta.
 
ANA: Quem tem o coração em perfeito estado, sempre falta uma pecinha pra fazer tudo girar, funcionar direitinho!
 
Gisele se aproxima e toca o coração da amiga com a mão.
 
GISELE: Me conta, ajuda a ordenar a desordem de aí dentro!
 
ANA:  Só estou preocupada Gi! Ele nunca sumiu por tanto tempo, sem me dar notícia pelo menos!
 
GISELE: Mas não é de hoje que ele some! Não é a primeira vez e não vai ser a última! Toda vez que ele sai daquela porta, se torna imprevisível saber quando ele volta!
 
ANA:  Ele já ficou uns dias, umas semanas sem me ligar... Mas já faz mais de dois meses que o número dele não chama o meu telefone... Minha caixa de e-mails só recebe mensagens de banco e de anuncio de loja...
 
GISELE: Você devia comprar um celular na promoção e enviar pra ele, não sei como um individuo consegue viver em pleno 2020 sem um bichinho desses!
 
ANA: Não sei onde ele está agora... E ele não gosta... Diz que isso afasta as pessoas...
 
GISELE: Só a vontade individual é capaz de separar ou unir pessoas! Se ele não quer ter um celular, é por que não quer dar notícias! Simples assim!
 
ANA: Às vezes você é cruel, amiga.
 
GISELE: Se eu não gostasse de você e fosse sua amiga, não cometeria essa crueldade contigo. Mas acho que agora você precisa ficar sozinha Ana, talvez seu eu interior, sua vontade absoluta, sejam um conselheiro melhor do que a eu! Fica bem!
 
Ela beija a amiga no rosto e sai com o pacote de açúcar debaixo dos braços, deixando Ana sozinha, CORTA PARA:
 
CENA 04 APARTAMENTO DE ANA INT/NOITE


 
Ana rascunha um e-mail para Carlo, preste a apertar em “enviar”, desiste e apaga a mensagem.
 
ANA: Melhor eu preservar o mínimo de integridade e amor-próprio possíveis!
 
Ela fecha o navegador, mas sem querer abre o álbum de fotos e algumas fotos dos dois durante uma viagem na Itália invadem a tela.
 
ANA: Maledetto! Nunca mais vou poder botar o pé de novo na Itália, sozinha ou acompanhada, sem pensar nele...
 
Ele toca delicadamente a tela, mas de repente, assaltada por ímpeto de raiva, fecha o instrumento.
 
ANA: Se eu me perder... Quem vai ajudar eu me encontrar de novo!
 
Ela olha para a parede, tomada por uma solidão insuportável.
 
FLASHBACK ON:
 
Lindas e idílicas paisagens da Itália. Um muro de pedras milenares, em estado deteriorado pelo tempo e pela força devastadora da guerra. Um carro cinza, de um modelo popular nos anos 90, para ali perto: Ana e Carlos descem e se aproximam do muro.
 
CARLO: Onde será a entrada?
 
ANA: Acho que para aquele lado!
 
Eles andam um pouco e encontram a entrada de largas pilastras.
 
ANA: Viajar horas por uma estrada esburacada apenas para visitar um cemitério...
 
CARLO: Você sabe muito bem que não se trata apenas de um campo santo, mia cara! Vai entrar, ou prefere ficar esperando aqui?
 
Ela se aproxima e envolve o braço dele com o céu.
 
ANA: Jamais te deixaria fazer isso sozinho...
 
Os olhos dois se cruzam ternamente.
 
CARLO: Eu não tenho medo de fantasmas, e tu bella mia?
 
ANA: Eu tenho medo é dos vivos, eles que carregam em si o poder para ferir, para machucar os corações das outras pessoas!
 
Dois adentram o cemitério.
 
CARLO: Você hoje está falando melancolicamente como uma poetisa...
 
ANA: Não posso fazer nada se a poesia está em toda parte, inclusive dentro de mim.
 
CARLO: Até mesmo quelle lapidi?
 
Ele abre os braços em torno de todas aquelas lápides, enquanto ela fixa o olhar em um túmulo qualquer e lê um nome entre-coberto de teias de aranha.
 
ANA: Elsa Bellini... Talvez ela fosse alta e pálida, de grandes e expressivos olhos azuis... Se apaixonou por algum garoto, os dois se amaram sobre a relva molhada de orvalho... Veio a guerra, ele morreu lutando...
 
O moço se aproxima de Ana e do túmulo.
 
CARLO: A bambina não comia e nem dormia, feneceu meses depois, morrendo d'amore... Toda vita...
 
Ana se vira, com o rosto em lágrimas.
 
ANA: Encerra poesia, por mais medíocre que pareça...
 
Ele se levanta também, e dois voltam a caminhar entre os túmulos do cemitério.
 
FLASHBACK OFF.
 
Ana faz um gesto espantando os seus fantasmas, começa a se despir e entra no banheiro, CORTA PARA:
 
CENA 05 APARTAMENTO DE ANA INT/NOITE
 
Ana deixa a água escorrer pelo seu corpo, ela sente o vapor quente na pele do rosto e automaticamente lhe traz uma sensação de purificação.
 
ANA: (Em off) Procurando um passado perdido e deixando o presente escorrer entre os dedos, como água quente...
 
FLASHBAK ON:
 
Perto de uma linda fonte sem água e tomada de ervas daninhas e era, Carlo procura algo.
 
CARLO: Aqui!
 
Ele se ajoelha na terra, ainda fria pela neve recém-derretida na primavera, com os dedos limpa a lápide onde se lê: “Enrico Barone”.
 
CARLO: (Emocionado) Meu tio-avô... Ou o que sobrou dele!
 
Ana se aproxima, por traz dele, como telespectadora daquela cena entre um tom emocional e patético, e com um pé afasta umas folhas que cobrem uma parte da lápide, revelando a foto do defunto. Ela se ajoelha também.
 
ANA: A semelhança é assustadoramente inquestionável!
 
Eles se entreolham, emocionados, a CAM enquadra os dois de costas, ajoelhados entre os túmulos numa atitude de silenciosa veneração, e se afasta lentamente, FLASHABACK OFF.
 
Ana se enxuga com uma tolha branca, apertando levemente as mechas de seus cabelos negros, a campainha toca.
 
ANA: Já vai! Não se pode nem desperdiçar água em paz nesse país!
 
Ela sai do banheiro enrolada, CORTA PARA:





 
CENA 06 APARTAMENTO DE ANA INT/NOITE


 
Ana abre a porta: Gisele traz o bolo que ela mesma fez e Lívia entra com uma garrafa de refrigerante a tiracolo.
 
ANA: Dessa vez acho que a Gi acertou, tá com uma carinha boa!
 
LÍVIA: Eu aboli copos e pratos descartáveis da minha vida, acho que teremos que lavar a louça depois...
 
GISELE: Eu já cozinhei, me dou o luxo de me eximir desta tarefinha ingrata!
 
ANA: A Lívia lava, com toda a sua preocupação ecológica, vai saber lavar economizando água...
 
Elas apertam as mãos.
 
LÍVIA: Eu lavo e a senhorita manda-chuva enxuga!
 
ANA: Feito!
 
Um corte rápido, Lívia lava os pratos enquanto Ana degusta a sua terceira fatia do bolo.
 
GISELE: Acho lisonjeio você estar destruindo a terceira fatia do meu bolo, mas não tem medo de engodar e embarangar?
 
LÍVIA: (Com militância de telão) Já não bastam as pressões da sociedade para que a mulher se enquadre nos padrões da mídia, e vem você com cabeça oca engrossar o coro Gisele!
 
GISELE: (Imitando a amiga) “Já não bastam as pressões da sociedade e patati e patatá!”
 
Ana bate levemente com a toalha nas pernas de Gisele, e elas caem na risada.
 
ANA: Acho que nem se eu comesse aquele bolo inteiro sozinha, ia me sentir inteira, preenchida, completa novamente!
 
Gisele tira o prato e o copo das mãos da amiga.
 
GISELE: Comer não preenche vazio dentro de corações inquietos!
 
ANA: Ocupando a boca, ocupo a cabeça também, mesmo que indiretamente.
 
LÍVIA: Antes gorda e de bem com a vida que magra depressiva!
 
GISELE: Vai começar a banalizar obesidade amiga?
 
Lívia joga água em Gisele e as três caem na risada.
 
LÍVIA: Odeio vocês por fazerem desperdiçar água atoa!
 
Lívia vai até a geladeira e abre o freezer.
 
LÍVIA: Será que tem sorvete aqui?
 
ANA: Tem um restinho de napolitano, mas só sobrou um restinho de chocolate, eu não gosto...
 
LÍVIA: Bom que como sozinha!
 
GISELE: Mas eu também quero uma colherada, militante gulosa!
 
ANA: Ele se lambuzava de chocolate... Agora eu deixo no freezer, até estragar...
 
GISELE: (Se lambuzando) É só não comprar mais sorvete desse sabor ué!
 
LÍVIA: Pode continuar comprando, a gente fica com a parte de chocolate!
 
ANA: Eu compro por que me lembra ele, sempre que passo em algum mercado... Ao menos quando ele voltar, vai encontrar a parte do sorvete que ele gosta...
 
LÍVIA: Amiga, deveria se empoderar mais, esquece quem te faz sofrer hoje e cultiva um amanhã saudável. Saudade é uma palavra que não existe no idioma dos ancestrais dele, talvez ele não a sinta tão pulsante como tu a sentes...
 
GISELE: O nome do livro é: “Comer, Rezar, amar!”
 
Lívia faz uma careta para Gisele, Ana abaixa a cabeça tristemente, CORTA PARA:
 
CENA 07 APARTAMENTO DE ANA INT/NOITE
 
Ana fecha a porta após as amigas irem embora, apaga a luz da sala e vai fechar a porta da varanda. Sente o vento frio no rosto, fixa os olhos lívidos de lágrimas no céu escuro, sem nenhuma estrela brilhante.
 
ANA: (Em off) Impedir a fragmentação dos nossos sentimentos é uma tarefa demasiadamente difícil, a muito custo consigo retardar a força que empurra sonhos não realizados, frustrações e decepções, partilhados em mil pedacinhos, para fora do meu coração cansado e dolorido... Mas será mesmo saudável, natural como colocar uma pedra para tapar a torrente que escapa de uma nascente de um rio?
 
Ela fecha a porta, limpa as lágrimas com as mãos e segue para o quarto, CORTA PARA:
 
CENA 08 APARTAMENTO DE ANA INT/DIA
 
Ana limpa o batom borrado se olhando no reflexo do vidro de um móvel da sala, Beatriz espera ela terminar com um espanador debaixo do braço. A filha fala com a mãe sem se virar.
 
ANA: As vezes eu acho que a senhora tem algum dom élfico, sempre parece pairar, nunca sei exatamente onde está e a qualquer momento pode aparecer atrás de mim...
 
BEATRIZ: Acho que cresci e engordei demais para poder ser comparada com um elfo... Apenas não faço cerimônia com a casa da minha filha?
 
ANA: Manter um pouco a privacidade da filha não vai lhe fazer mal, mamãe!
 
Ana beija bochecha da mãe delicadamente.
 
BEATRIZ: Privacidade não é algo que se estenda a mãe. Aonde vai? Terça não é seu dia de folga?
 
ANA: Não tenho nenhum “dia de folga”, apenas não dou aula hoje, é bem diferente... Um amigo meu arrumou um trampo extra pra mim, depois te falo o que é...
 
BEATRIZ: Ele não deu notícias?
 
ANA: Nada, ou ‘Niente’ como ele diria... Nem um mísero e-mail, mas tutto bene! Não vou morrer de solidão por que fui abandonada!
 
Beatriz faz uma careta, Ana coloca os óculos escuros e sai, CORTA PARA:
 
CENA 09 CASA DE CARLA INT/DIA
 
Leila aparece com um baú empoeirado e despeja em plena mesa do café da manhã.
 
HELOISA: Pão francês e brioches salpicados com grãos de poeira, très chic!
 
LEILA: Encontrei na despensa, relíquias de família?
 
HELOISA: O brasão da família, deve ser da sua avó...
 
CARLA: Tira isso daqui menina, estou a ponto de espirrar só de ver!
 
PEDRO: Grandes ídolos, mitos da atuação espirram como meros mortais?
 
Pedro se levanta e beija a mulher.
 
HELOISA: Não exagere, minha filha ainda não feneceu para ser um mito!
 
PEDRO: Um mito não é menos mito por que o seu pulmão ainda respira, é um mito vivo!
 
CARLA: Não me considero um mito, abandonei as telas cedo demais. O que raios você queria vasculhando a despensa?
 
HELOISA: Abre isso logo minha filha, estou curiosa!
 
LEILA: Tenho dom de bibliotecária, ordenar bagunça alheia está se tornando um vício incontrolável!
 
Heloisa e Carla tiram a mesa e Leila despeja o conteúdo do baú em cima da mesa: antigos figurinos de teatro. Pedro se levanta, um pouco incomodado.
 
HELOISA: Ofélia, Catarina, Julieta...
 
LEILA: Eram seus mana?
 
CARLA: Minha carreira foi trilhada na televisão, não tive a oportunidade de encarnar personagens icônicos assim nos palcos...
 
PEDRO: (Com um sorriso amarelo de descontentamento) Adeus queridas, nos vemos mais tarde.
 
HELOISA: Não sei por que os homens se incomodam quando os holofotes estão apontados para as suas mulheres?
 
CARLA: Mamãe!
 
Leila põe o véu de Julieta na cabeça.
 
LEILA: E a quem pertenciam essas coisas?
 
HELOISA: Eram da avó de vocês, ela pisou nos palcos algumas vezes antes de se casar com o meu pai... Devo ter alguma foto dela como Julieta em algum lugar, com os lindos cabelos trançados em diagonal...
 
CARLA: Já faz alguns anos que os holofotes não brilham sobre mim, se é que realmente já os senti um dia esquentando a pele do meu rosto...
 
HELOISA: Falei no sentido metafórico, você sabe muito bem disso...
 
LEILA: Talento está correndo nas veias da família...
 
HELOISA: Pena que talento sozinho não sustenta um passado glorioso, sua avó não pode seguir adiante, era inadmissível para uma moça de boa família... Sua irmã tentou trilhar um caminho parecido, mas parou em uma estação chamada casamento feliz...
 
CARLA: (Cabisbaixa) Eu sei o que a senhora está pensando mãe, mas no meu caso foi uma escolha, por livre e plena vontade independente! A vovó não pode escolher, eu fui até onde eu queria, não tiraram as malas das mãos e me rasgaram as passagens: pesei os prós e contras e tomei a decisão que achava correta...
 
Heloisa ignora a filha mais velha e se volta para a caçula.
 
HELOISA: Pena que você e eu não temos nenhum dom artístico...
 
LEILA: Ordenar a bagunça também é uma arte mamãe!
 
CARLA: Vou arrumar o Pedrinho, já está na hora de deixa-lo na escola...
 
Carla sai, Heloisa e Carla conversam distraídas, CORTA PARA:
 
CENA 10 BAIRRO NOBRE DO RIO EXT/DIA
 
Ameaça chover, Ana abre o guarda-chuva antes que o desastre iminente acabe com seu penteado, anda saltitando com os sapatos de salto chiques, está atrasada. Começa a chover.
 
ANA: Chegue atrasada, porém chegue linda!
 
De repente a vitrine de uma loja chama a sua atenção: um deslumbrante vestido vermelho desponta de um manequim, ela para durante alguns instantes magnetizada por ele. A chuva aumenta rapidamente, a água escorre sobre o vidro, formando arabescos vítreos naquela superfície. Ela olha o relógio, está mais atrasada do que planejava. 
 
ANA: Ainda bem que estamos no Rio e não em Londres!
 
Ela sai tropeçando nos saltos novamente, CORTA PARA:
 
CENA 11 EMISSORA DE TV EDUCATIVA EXT/DIA


 
A chuva continua forte, porém Ana consegue chegar sã e salva. Ana abre o porta-maquiagem e olha no espelho se está tudo em ordem.
 
ANA: Consegui chegar linda!
 
Um carro passa por ali e esguicha toda água de uma poça em cima de nossa heroína.
 
ANA: No último segundo! Não imaginava esse plot twist!
 
Ela tenta se limpar, mas apenas piora o resultado.
 
ANA: Como vou entrar assim!
 
Ela para, respira, toma coragem para continuar.
 
ANA: Finja que você está num filme de comédia romântica, com “Little Woman” tocando ao fundo!
 
Ela entra no prédio, desfilando com seus sapatos chiques, CORTA PARA:
 
CENA 12 EMISSORA DE TV EDUCATIVA INT/DIA
 
No elevador, ela tenta manter a pose, ao lado de um executivo de terno e gravata, que a olha de forma rude. O elevador se abre e ela sai correndo: passa pelo corredor, com o guarda-chuva fechado pingando água no chão e deixando um rastro. Ela entra numa sala, no meio de uma reunião: todos param de falar instantaneamente e olham para ela de forma constrangedora.
 
ANA: O trânsito anda cada vez pior... Mas acho que consegui chegar sã e salva!
 
LEONORA: Nem tão sã e salva assim, minha criança!
 
Paulo afasta cavalheirescamente uma cadeira para Ana.
 
PAULO: Por favor, sente-se e vamos retomar nossa reunião...
 
Ana senta-se envergonhada, e tremendo de frio. Paulo retira o seu casaco e coloca sobre os ombros dela delicadamente, ela lhe agradece ternamente com os olhos.
 
LOLA: Então o nosso orçamento é digno de uma peça infantil escolar? Os vestidos da Anna serão feitos com chita comprada em camelôs?
 
PAULO: Não exagere Lolita, com pouco dinheiro e um olhar diferente, podemos fazer milagres!  (Galante) E todos nós confiamos no seu talento, sofisticação e inteligência!
 
Ele beija a mão de Lola, como se fosse de uma donzela elizabetana.
 
LOLA: Eu verei o que posso fazer...
 
HEITOR: Externas internacionais estão fora de cogitação, pensei em fazermos tudo num conceito fechado... Pra simbolizar a opressão da sociedade sobre o psicológico da nossa protagonista...
 
LEONORA: E a neve? Se existe um personagem que não pode ficar de fora de “Anna Kariênina”, sem dúvida alguma é a neve!
 
PAULO: Seria interessante assumir que não estamos ser realistas, melhor, não queremos ser realistas e substituirmos a neve cenográfica por papel reciclado e picado!
 
LEONORA: (Orgulhosa) Não é porque é meu filho não, mas você é um gênio, minha criança!
 
PAULO: Não me envergonhe mamãe, na frente dos nossos colegas de trabalho...
 
HEITOR: O elenco está praticamente fechado, os coadjuvantes pelo menos. Agora a nossa heroína protagonista...
 
LOLA: Precisa ser alguém de uma beleza estonteante, única! Ana Paula Arósio!
 
LEONORA: Acho melhor desistir, essa só quer cuidar de cavalos numa fazendinha do reino unido...
 
Enquanto a reunião transcorre, nada fala Ana, e vez ou outra, ela troca olhares com Paulo.
 
 
FIM DO CAPÍTULO.



 
 
 


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